Olhando
a foto de uma “bodega” (lugar onde se comercializa de quase tudo) das antigas, voltei
no tempo; idos dos anos sessenta, século passado.
Tinha entre quatro e seis anos.
Residia em uma casa que pertenceu ao meu avô paterno (que hoje só existe na
memória da família e em uma foto antiga de Santana do Ipanema), do outro lado
do rio Ipanema, no Bairro da Floresta. Na verdade, esse bairro estava em
formação, tanto que haviam mais árvores do que casas. Talvez tenha surgido daí
o nome do bairro: Floresta.
Minha humilde residência, casa feita
de taipa, ficava um pouco acima (topografia de aclive) da casa/armazém de “seu
Chico Cassiano”, próximo da casa de “seu Alfredinho”. Abaixo da casa de “seu
Alfredinho, do mesmo lado, ficava a casa, armazém e “bodega” de "seu Abdias”.
Entre as residências de “seu Alfredinho” e de “seu Abdias”, ficava a casa de “dona
Dirce”.
Em uma época em que, na cidade,
ninguém falava ou sabia da existência de supermercados, ou mesmo de hipermercados, era lá, naquela “bodega”, que meus pais e, em vários outros
momentos, meus irmãos e eu, fazíamos compras.
“- Seu Abdias! Tem pão doce?”; “- Seu
Abdias! Tem pão aguado (francês)?”; ”- Dona Noêmia! Mamãe (as vezes papai),
mandou comprar 1Kg de farinha (ou bolachas “secas”, ou bolachões, ou um pacote
de colorau...)”; “- Dona Noêmia, mamãe disse que mandasse uma agulha e um
carretel de linha branca; etc; etc...)...
“Dona Noêmia” era a esposa de “seu
Abdias”. Os dois eram ótimas pessoas. "Seu Abdias" tinha uma irmã, não me recordo o nome
de batismo, mas de seu apelido, como era conhecida, “Tôta”. Ela, “Tôta”, tinha
problemas mentais e, por vezes, andava falando consigo mesma. Isso me
assustava. Quando era eu que ia até a “bodega”, rezava para que não a
encontrasse, embora gostasse de ir fazer compras; isso porque, tanto “seu Abdias”,
como “dona Noêmia”, vez ou outra me presenteava com confeitos (balas doces)...
Recordo-me de que, meu pai construiu
uma casa num terreno, no mesmo bairro, um pouco mais acima da que morávamos. Mudamos para lá.
Nessa casa, assim como na anterior,
eu dormia em uma rede. A diferença era que na casa antiga era na sala principal,
e na casa nova era em um quarto com acesso pela cozinha. Na cozinha havia um
fogão que funcionava com carvão vegetal.
Todas as madrugadas, meu pai se
levantava, ainda de madrugada, e ia ao rio Ipanema buscar água. Dava várias
viagens, trazendo esse líquido precioso em um “pote” (recipiente feito de barro,
tamanho médio), nas costas, até encher dois “purrões” (recipiente feito de
barro, tamanho grande). Meu pai saia pela porta da cozinha deixando-a apenas
escorada.
Muitas vezes quando ele saía eu
estava acordado e, nesses momentos, ficava muito tenso. Sentia-me inseguro pela
ausência paterna e também por causa da porta ficar somente escorada.
Certa vez, quando meu pai saiu, não
demorou muito, percebi a porta abrir-se devagar e também os passos de uma
pessoa entrando. Não sabia se era algo real ou imaginário (fruto de minha
paranormalidade). Senti-me paralisado!
Com mais pânico fiquei ao ouvir a
voz de “Tôta”. Era ela! Naquele momento, não sei o que era pior, se era a
presença dela ou de algo sobrenatural.
“Tôta” entrou, pegou carvão em um
depósito, colocou no fogão, ascendeu o fogo, subiu em cima desse mesmo fogão e,
de cócoras, abanava o fogo e conversava consigo mesmo. Era uma conversa que
parecia não ter mais fim.
Algum tempo, depois, ouvi meu pai
chegando, abrindo a porta e entrando com o “pote” d’água.
Ele, simplesmente, mandou que ela descesse
de cima do fogão e se retirasse. Ela obedeceu sem nenhum questionamento e foi
embora.
Chamei por meu pai e, com voz
embargada, disse que estava com medo que ela voltasse. Ele disse que ela não
tinha como fazer mal a ninguém. Naquela madrugada ele não retornou mais ao rio
Ipanema. Deixou para acabar de encher os “porrões” pela manhã, depois que todos
acordaram. Isso resolveu meus medos, pelo menos naquela manhã... E que manhã!
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